quarta-feira, 1 de junho de 2011

O templo da moda .

Depois de mostrar que o mais culto dos discípulos de Jesus, Judas, o traiu, o mais forte deles, Pedro, o negou, e o resto do bando, à exceção do João, debandou — enfim, depois de demonstrar a fragilidade masculina e a grandeza feminina, revelou por que estava no templo da moda. Começou tecendo algumas informações conhecidas nos meios sociológicos, mas desconhecidas de alguns dos membros que o tinham seguido.
Disse que no passado o sistema masculino considerara as mulheres uma classe inferior, amordaçara-as, queimara-as, apedrejara-as. Com o tempo, elas se libertaram, resgataram parcialmente seus direitos. Fez uma pausa nas suas idéias e citou o número ”um”. Fiquei inquieto com a citação numérica no meio do diálogo. Já havia visto esse filme.
O mestre comentou que as mulheres começaram a votar, brilhar no mundo acadêmico, crescer no mundo corporativo, ocupar espaços nos mais diversos territórios sociais; as mulheres tornaram-se cada vez mais ousadas. Com eficiência, começaram a mudar algumas áreas vitais da sociedade, a introduzir tolerância, solidariedade, companheirismo, afeto e romantismo. Mas o sistema não as perdoou pela audácia.
Preparou para elas a mais cafajeste e sorrateira das armadilhas. Em vez de exaltar sua inteligência e notória sensibilidade, começou a exaltar o corpo da mulher como nunca na história. Usou-o exaustivamente para vender produtos e serviços. Aparentemente elas sentiram-se bem-aventuradas. Parecia que as sociedades modernas estavam querendo compensar milênios de rejeição. Ingênuo pensamento. O mestre fez uma pausa para respirar.
Fitando o imenso e colorido templo da moda, ele ficou indignado e em voz alta começou a convidar as pessoas para falar sobre a última moda. Nada poderia ser tão estranho para alguém com suas vestes. Mas, como o mundo fashion é versátil, pensaram que representássemos um estilista rebelde às convenções. Ficamos inibidos em ver pessoas tão bem-vestidas começarem a nos rodear. Algumas delas o identificaram.
Rapidamente, ele começou a discorrer sobre suas polêmicas idéias:
— Quando as mulheres se sentiam no trono do sistema masculino, o mundo da moda as aprisionou no mais grave e sutil estereótipo! — E citou o número ”dois”, profundamente triste.
Eu não sabia aonde o semeador de idéias queria chegar. Sabia que os estereótipos são um problema sociológico. O estereótipo do louco, do drogado, do político corrupto, do socialista, do burguês, do judeu, do terrorista, do homossexual. Usamos os estereótipos como um padrão torpe para tachar as pessoas com determinados comportamentos. Não avaliamos o conteúdo psíquico delas: se possuem determinados gestos, imediatamente as aprisionamos na masmorra do estereótipo, classificando-as como viciadas em drogas, corruptas, doentes mentais. Os estereótipos reduzem a dimensão humana.
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Mas o que o mundo belíssimo da moda tem a ver com os estereótipos? As mulheres eram livres para vestir o que quisessem, comprar as roupas que bem entendessem e ter o corpo que desejassem. Eu não entendia por que tamanha preocupação do mestre. Entretanto, à medida que ele expunha seu pensamento, fiquei impressionado.
O estereótipo do belo, no mundo da moda, começou a ser
formado pela exceção genética. Que desastre! Que injustiça!
Bartolomeu estava boiando até esse momento.
— Chefinho, é caro esse estereótipo? — perguntou, pensando que era um tipo de roupa. O mestre disse-lhe:
— As implicações são caríssimas. — E explicou: - Para maximizar as vendas e gerar uma atração fatal entre as mulheres, o mundo fashion começou a usar o corpo de jovens completamente fora do padrão comum como protótipo de beleza. Uma entre dez mil jovens de corpo magérrimo e fácies, quadris, nariz, busto e pescoço estritamente bem-torneados tornou-se ao longo dos anos o estereótipo do belo. Que conseqüências no inconsciente coletivo!
As pessoas se aglomeravam cada vez mais. Depois de uma breve pausa, ele continuou:
— A exceção genética virou a regra. As crianças transportaram as bonecas Barbies com seu corpo impecável para o teatro da vida, e as adolescentes transformaram as modelos em um padrão de beleza inalcançável. Esse processo gerou, em centenas de milhões de mulheres, uma busca compulsiva do estereótipo, como se fosse uma droga. Elas, que sempre foram mais generosas e solidárias que os homens, se tornaram, sem perceber, carrascas de si mesmas. Até as chinesas e japonesas estão mutilando sua anatomia para se aproximar da beleza das modelos ocidentais. Sabiam disso?   ’’
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Eu não tinha essa informação, mas como ele a tinha? Como pode alguém completamente fora de moda estar tão informado sobre ela? De repente, ele ginterrompeu meus pensamentos citando, consternado, o número ”três”.
E continuou dizendo que tal modelo penetrara como uma bomba silenciosa no inconsciente coletivo, implodindo a autoimagem, causando um terrorismo contra a auto-estima, algo jamais visto na história. No passado, os estereótipos não tinham graves conseqüências coletivas porque ainda não éramos uma aldeia global. Quando as mulheres pensavam que estavam voando livremente, o sistema tosou-lhes as asas com a ”síndrome da Barbie”.
Um estilista o interpelou tensamente:
— Isso é folclore. Discordo de suas idéias.
— Gostaria que fosse. Quem dera minhas idéias fossem tolas. — E citou o número quatro.
Nesse momento, uma jovem perguntou, incomodada:
— Por que cita números enquanto fala?
O mestre olhou para mim e fez quinze segundos de silêncio. Parecia que estava sendo arrebatado para os recantos da sociedade e penetrado como um raio no âmago de muitas famílias que estavam perdendo seus filhas e filhos. Com os olhos embebidos em lágrimas, retornou dessa viagem e disse a todos:
— Lúcia, uma jovem tímida, mas versátil, criativa, excelente aluna, está com 34 quilos, embora tenha 1,66 metro de altura. Seus ossos saltam sob a pele, formando uma imagem repulsiva, mas ela se recusa a comer com medo de engordar. Márcia, uma jovem sorridente, extrovertida, uma menina encantadora, está com 35 quilos e tem 1,60 metro de altura. Sua face cadavérica leva seus pais e amigos ao ápice do desespero, mas ela do mesmo modo se recusa a se alimentar. Bernadete está com 43 quilos
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e mede 1,70 metro de altura. Gostava de conversar com todo mundo, mas se isolou do namorado, dos amigos e do bate-papo na internet. Rafaela pesa 48 quilos e mede 1,83 metro. Jogava vôlei, gostava de ir à praia e correr sobre a areia, mas agora está morrendo de inanição.
Fez mais uma pausa, olhou atentamente a platéia e disse:
— Durante minha fala, quatro jovens desenvolveram anorexia nervosa. Algumas superam seus transtornos, outras o perpetuam. E se vocês perguntarem a elas por que não comem, ouvirão: ”Porque estamos obesas”. Bilhões de células suplicam que se alimentem, mas elas não têm compaixão do seu corpo, que não tem força para fazer exercícios físicos nem para andar. O desespero para alcançar o estereótipo do belo fê-las adoecer profundamente e estancou o que jamais conseguimos estancar naturalmente: o instinto da fome.
E comentou que, se essas pessoas vivessem em tribos onde o estereótipo não tivesse um peso intenso, não adoeceriam. Mas vivem na sociedade moderna, que não apenas difunde a magreza insana, mas supervaloriza determinado tipo de olhos, pescoço, busto, quadris, o tamanho do nariz — enfim, um mundo que exclui e discrimina quem está fora do modelo. E o pior é que tudo isso é feito sutilmente. E enfatizou:
— Não nego que possa haver causas metabólicas para os transtornos alimentares, mas as causas sociais são inegáveis e indesculpáveis. Há cinqüenta milhões de pessoas com anorexia nervosa no mundo, um número que nos remete às proporções do número de mortos da Segunda Guerra Mundial.
De repente, o mestre perdeu a sobriedade, deixou o tom ameno e, como se fosse um psicótico, subiu em cima de uma poltrona que estava ao seu lado e bradou alto e bom som:
— O sistema social é astuto, grita quando precisa se calar e se cala quando precisa gritar. Nada contra as modelos e os
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inteligentes e criativos estilistas, mas o sistema se esqueceu de gritar que a beleza não pode ser padronizada.
Várias pessoas, inclusive modelos internacionais e estilistas famosos que passavam por ali, também eram atraídos pelo homem excêntrico que alardeava suas idéias. Já havia pessoas em diversas sociedades lutando contra essa discriminação, mas a luta era tímida perante a monstruosidade do sistema. O mestre nem sempre era dócil e paciente. Em algumas situações, mostrava um ar de irritação e inconformismo. Embriagado com o cálice da indignação, usou mais uma vez seu felino método socrático:
— Onde estão as gordinhas nos desfiles? Onde estão as jovens com quadris menos bem-torneados? Onde estão as mulheres de nariz saliente? Por que neste templo se escondem as jovens com culotes ou estrias? Não são elas seres humanos? Não são elas belas? Por que o mundo/as/izon, que surgiu para promover o bem-estar, está destruindo a auto-estima das mulheres? Essa discriminação socialmente aceita não é um estupro da auto-estima? Não é tão violenta quanto a discriminação contra os negros?
Ao ouvir esse questionamento, eu começara a ter asco do sistema. Todavia, quando o mestre havia nos conduzido ao auge da reflexão, apareceu Bartolomeu para novamente quebrar o clima. Levantou as mãos e com a maior descaramento tentou referendar o mestre:
— Chefinho, concordo com você. Não discrimino as mulheres. Já namorei cada assombração!
A platéia não se conteve com sua irreverência. Mas nós estávamos apreensivos, tão aflitos que olhamos para o incontrolável discípulo e dissemos uma frase que havia se tornado parte do nosso patrimônio cultural:
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,.   — Finja que você é normal, Bartolomeu!
As pessoas ficaram embaraçadas com as idéias do mestre. Algumas, boquiabertas e encantadas, outras, odiando essas idéias até a última fibra do tecido que usavam. Os paparazzi começaram a tirar fotos e mais fotos. Estavam ansiosos para noticiar o escândalo do ano.
Após ouvir a platéia irromper em sorrisos pela frase do discípulo viciado em fazer perguntas e dar opiniões, o mestre diminui o tom de voz e fez alguns pedidos emocionados:
— Rogo aos inteligentes estilistas que amem as mulheres, todas elas, que invistam na saúde psíquica delas não utilizando apenas a exceção genética para expressar sua arte. Poderão perder dinheiro, mas terão ganhos insondáveis. Vendam o sonho de que toda mulher tem uma beleza única.
Algumas pessoas o aplaudiram, inclusive três modelos internacionais que estavam do meu lado direito. Mais tarde, ficamos sabendo que as modelos eram expostas a diversos transtornos psíquicos. Elas tinham dez vezes mais chances de ter anorexia do que a população em geral. O sistema as entronizava e, ao mesmo tempo, as encarcerava. Em pouco tempo, eram descartadas.
Três pessoas o vaiaram. Uma delas jogou uma garrafa plástica de água no seu rosto, abrindo-lhe o supercílio esquerdo, produzindo um evidente sangramento. Pegamos no seu braço e queríamos que interrompesse sua fala, mas ele não se intimidou. Limpando o sangue com um velho lenço, pediu silêncio e continuou. Pensei comigo: ”Há muitas pessoas que escondem o que pensam debaixo do manto da sua imagem social; eis que sigo um homem que é fiel a suas idéias”. Em seguida ele fez uma proposta que nos deixou arrepiados:
— Noventa e sete por cento das mulheres, em algumas sociedades modernas, não se vêem belas. Por isso, em cada loja
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de roupa e em cada etiqueta deveria haver uma tarja semelhante à da advertência contra o cigarro com frases como esta: ”Toda mulher é bela. A beleza não pode ser padronizada”.
Essas palavras tiveram grande destaque na mídia. No exato momento da proposta, um jornalista o fotografou em um ângulo que pegou a metade superior do seu corpo e, no fundo, a logomarca da cadeia internacional de roupas do grupo Megasoft.
Ao ouvir suas idéias, eu não conseguia deixar de fazer a velha pergunta para mim mesmo: ”Quem é esse homem que faz propostas revolucionárias? De onde provém seu conhecimento?”. Em conversas reservadas, ele nos dizia que, um século após Abraham Lincoln ter libertado os escravos, Martin Luther King estava nas ruas das grandes cidades americanas lutando contra a discriminação. A discriminação demora horas para ser construída, mas séculos para ser destruída.
Foi incisivo ao afirmar para os presentes que os fenômenos fundamentais da existência jamais poderiam ser padronizados. Sexo, o sabor dos alimentos, o apetite, a arte, bem como a beleza, não poderiam ser classificados.
— Qual é a freqüência normal das relações sexuais? Todos os dias? Uma vez por semana? Uma vez por mês? Qualquer classificação geraria graves distorções. O que é normal, senão aquilo que satisfaz a cada ser humano? O que satisfaz senão aquilo que é suficiente?
Uma belíssima modelo internacional, chamada Mônica, profundamente tocada com seu discurso, o interrompeu e teve a ousadia de dizer publicamente:
— Eu só sabia desfilar, desfilar. Meu mundo eram as passarelas. Fui fotografada pelos melhores fotógrafos internacionais. Meu corpo foi estampado nas principais capas de revistas. Fui atirada ao alto pelo mundo fashion, mas o mesmo mundo que me exaltou me expeliu quando ganhei cinco quilos. Hoje tenho
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bulimia. Ingiro alimentos compulsivamente, em seguida sofro uma descarga de sentimento de culpa e ansiedade e, por fim, provoco vômitos. Minha vida é um inferno. Não consigo sentir o sabor dos alimentos. Não sei mais quem sou nem o que amo. Já tentei três vezes o suicídio.
Não havia lágrimas em seus olhos, pois elas tinham se esgotado. O mestre, ao observar o sofrimento da modelo, respirou profundamente duas vezes. Sentiu que era necessário se calar, percebeu que a experiência de Mônica era mais eloqüente que as suas palavras. Mas antes queria vê-la sorrir. Saiu do estado da reflexão para o do humor. Relaxado, solicitou:
— Quando as mulheres estão diante do espelho, dizem uma famosa frase, ainda que sem consciência. Qual é? — As mulheres responderam coletivamente: ”Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?”. Não! Elas dizem assim: ”Espelho, espelho meu, existe alguém com mais defeitos do que eu?”.
A multidão sorriu. Mônica deu uma bela gargalhada; fazia cinco anos que não ria desse modo. Era o que ele desejava: vender-lhe o sonho da alegria. Foi um ensaio sociológico admirável. Foi a primeira vez que vi o bom humor florir no caos.
Bartolomeu se aproximou do mestre e disse:
— Chefmho, não vejo defeito em mim quando me olho no espelho. Será que tenho problema?
— Não, Bartolomeu. Você é lindo. Olhe seus amigos. Não somos maravilhosos?
Boquinha de Mel deu uma olhada geral no grupo de discípulos.
— Chefmho, não force a barra. A família é meio desarrumada.
Demos risadas e saímos. Nunca nos sentimos tão belos, pelo menos aos nossos olhos.

Um comentário:

  1. Ler o livro "o vendedor de sonhos - o chamado" foi uma das coisas mais fantásticas que pode ter me acontecido, fez "abrir minha mente",um pouco desatenta, pra algumas coisas bem interessantes. É muito difícil escolher um capítulo que eu possa considerar o melhor pois todos,sem dúvidas, foram maravilhosos e muito bons para leitura. Esse em especial por falar sobre como,desde criança, nos é imposto "os padões da beleza ideal".

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